Thursday, September 28, 2006

Leitura de uma flor: criando histórias para desconhecidos.



Quando mais esperei pela notícia que queria ouvir, ela não veio. Muito tempo depois, que cronologicamente seria resumido em alguns dias, mas psicologicamente significava um grande salto dentro do eterno, a notícia veio. Fingi alegria, de repente por estar mesmo alegre, uma alegria escondida bem lá no fundo, na zona abissal do existir. Alegria confusa, onde cabe a contradição, raiva, conflito, tristeza. Onde cabe necessidade, sentimento, razão, felicidade, falsidade. Tentei compreender que aquele tipo de alegria podia ser genuinamente humano: cheio de sujeira, cheio de limpeza. Tentei compreender que era assim que cresceria. Mas não adianta, eu não entendi. Briguei comigo mesma diante do espelho e a figura refletida disse-me: “amoral” enquanto eu pensava apenas: “fidelidade”.
Esse momento de expansão tão pouco falado, mas tão desejado, esse sentimento de superar-se a si mesmo, o que isso significa? Todas minhas raízes estão fixadas num solo onde me plantaram, sair seria demasiadamente perigoso, eu poderia não me adaptar as novas condições biológicas. Imponho-me fidelidade à minha terra: “Não!” – diz o meu outro lado.

Movimento
Ser de tudo e de nada
Não ter raízes
Estar hábil para se fixar em qualquer lugar e circunstância
Ser flexível
Produtivo

Ser fiel a um único lugar, que é o espaço mais seguro que pode existir: o corpo.

Libertar a existência. Mas ai vem o paradoxo: a liberdade para com certas coisas exige a prisão a certas outras coisas.









* Este é um texto fictício, se é que isso existe.

Saturday, September 23, 2006

Histórinha cretina para uma manhã levemente surrealista.

José Pires da Silva, cidadão notável, trabalhador, cristão e amante da música sacra acordou sentindo fortes dores de estômago. Levantou-se com dificuldade, caminhou até o banheiro, lavou o rosto na água fria, ainda de olhos fechados tateou o armário, abriu-o, pegou um frasco de remédios que não viu, abriu-o, tomou duas pílulas do remédio que não viu. Esperou.
Dentro desta espera Clarissa apareceu: jovem, alta, esguia, cabelos loiro escuro, bonita e amável. Estava dançando um tango sozinha, deslizando pelos azulejos do banheiro, por entre a privada e a banheira, sorria debilmente. José olhou para Clarissa, tudo em volta ficou escuro, a dor no estômago agora se alastrava pelo corpo inteiro, um formigamento nos dedos, braços, pés, cabeça.
Clarissa olhando para a cara amarelo doença de José perguntou:
- Você está com fome?
- Muita fome, mas meu estômago dói.
- Ele dói de fome, eu aposto.
- Dói de dores menina! Se fosse fome eu saberia.
- Há quanto tempo você não come José?
- Ontem mesmo eu jantei... Ai!
- Você respirou enquanto mastigava?
- O que? Eu não sei, a gente respira enquanto mastiga?
- Tem gente que não, mas eu sim. Nunca tive dores de estômago.
- Você está louca menina? Que história é essa de respirar? Eu respiro o tempo todo, se não respirasse estaria morto!
- Você está morrendo... Agora mesmo!
José se sentiu confuso com o tom de calma nas palavras de Clarissa, na sua opinião ela estava ficando louca. Lamentou-se por dentro, mas isso deu lhe a impressão de ter aumentado as dores estomacais. Clarissa continuava olhando-o profundamente, expressão firmemente amável.
- AI! O remédio está fazendo efeito... AI! Sai daqui menina, não quero que você me veja assim. SAI DAQUI!
Clarissa obedeceu e saiu do banheiro dando passos solitários de um tango sem música.
José caiu no chão, barriga virada pra cima, pernas abertas com a distância de 73 centímetros uma da outra. Se contorcia em cólera, sentiu que ia morrer, pior, sentiu que ia dar vida à alguma coisa. Vomitou. Seu vômito era gosmento, cor de pastel, sem nenhum material orgânico identificável. Parecia ser um aglomerado de pele velha mal digerida.
Clarissa apareceu na porta do banheiro:
- Viu só, sua fome é tanta que seu estomago já estava por digerir-se a si mesmo!
- Me traz algo pra comer menina! Me traz logo!
Clarissa voltou com um prato de sopa. José o devorou em menos de dois minutos, enfiava colheradas de comida impulsivamente dentro da boca, sem ao menos mastigar os pedaços de cenoura ou batata.
- Você vai morrer José. Você não é de ferro.
- Pára!
- Você respirou querido José? Você comeu tão rápido. Que gosto tinha a sopa?
- Não importa, eu estava com fome!
- Você come e não sente o gosto da comida!? Inútil!
- Eu estou alimentado.
- Que gosto tinha você mesmo?
- Eu? Eu? Não sei não. Mas a sopa que você me deu tinha gosto de batata.

Tuesday, September 05, 2006

Mutações

Outro dia discutia sobre a existência de uma essência da humanidade que não muda nunca, mas era ainda um assunto especulativo o bastante para não ser entendido.
Ontem assisti a uma palestra, não lembro o nome, e não importa. Lá ouvi que o fato de não vivermos mais em uma sociedade tribal e sim no sistema capitalista não pode ser chamado de evolução, mas sim de mutação. Bingo! Era isso que faltava pra complementar a minha idéia. Segue:
Eu costumo muito ler livros do século passado, retrasado e até mais antigos e sabem, não parece que estou lendo livros tão antigos porque eles não são ultrapassados. Leio o livro do fulano e lá está o autor citando a miséria e preguiça do homem, outro fala do caos político, em outros aparecem personagens que se preocupam mais em ferrar com a vida de alguém do que fazer a deles mesmos melhorar. Que diferença existe disso no hoje? Sim, queda do feudalismo, revolução industrial, monarquia, socialismo, capitalismo. Católicos, anglicanos, pagãos. Não importa, o contexto muda, mas os problemas não, eles são essencialmente os mesmos. Entenderam? Mutações, houve transformações, como se o contexto de um problema expirasse por enfado e um novo contexto surgisse pra mascarar o mesmo problema com uma cara nova.

É, eu estou considerando "avanços" da medicina e da tecnologia também, mas estes dois mereceriam uma discussão a parte.

Sabe aquela frase símbolo do Positivismo que aparece na bandeira do nosso país? "Ordem e Progresso"


Parece que a gente anda num mesmo círculo, sempre, mas cada vez a gente enfeita mais o círculo, ou enfeita mais a gente mesmo, como se trocássemos de roupa, mas é claro, não é uma roupa que nos define.