Atalho para a harmonia
No escuro do quarto, onde não havia o que ver, tornando indiferente a ausência de luz, um homem fechou os olhos cansado de tentar enxergar e se concentrou na escuridão que suas próprias pálpebras fechadas resultavam. Ficou assim por algum tempo, se sentindo vazio pela falta de elementos que seus cinco sentidos poderiam perceber e ocasionar algum tipo de distração ou deleite. O homem resolveu então inventar uma história, pois assim veria alguma imagem em seus pensamentos escuros. Começou bem, mas logo desistiu, só conseguiu pensar nos dias iluminados que passava em lugares livres, sem teto e nem paredes, achando muito triste estar em tal situação. Calou sua mente concentrando-se no escuro mais uma vez e tentou lembrar porque agora se encontrava neste estado. Lembrou que tinha esposa e filhos, todos bonitos e bem coloridos, lembrou da vizinha e seu papagaio, lembrou dos pacientes que tinha no hospital, lembrou-se de Deus e dos anjos, da luz com a qual estes seres eram retratados. Mas para ele, a vista ainda era turva. Abriu novamente os olhos e experimentou ver: tudo continuava escuro, apenas com algumas lembranças que não faziam muita diferença pairando na atmosfera invisível. – Como voltar a enxergar? – perguntou-se o homem. Pensou na origem da escuridão e, é claro, não encontrou resposta, pois a escuridão é justamente o incognoscível. Pensou então em seu significado e compreendeu que o que não se vê é aquilo que não se entende, que a escuridão estava sendo usada como símbolo da falência desde os primórdios do tempo. Mais lembranças vieram para a superfície da consciência desse homem e ele recordou o dia em que deixou morrer um de seus pacientes durante uma cirurgia cardíaca, ninguém o culpou pela morte, porém o homem se sentia responsável. Fez uma expressão de lamento que não pôde ser vista e deu uma rápida piscadela com os olhos e por um momento enxergou! mas ao abrir novamente os olhos constatou que estava na negritude. O sentimento de culpa ainda o assombrava e o fazia refletir, trabalhava tanto que estava indo a loucura, perdendo o controle do que fazia, perdendo o controle de todos os compromissos. O homem analisou os últimos acontecimentos do qual lembrava ter vivido, o divórcio e a partida da mulher levando junto os filhos, apertou os olhos na ânsia de compreender que ações resultaram naqueles acontecimentos... ele era um desleixado, deixando tudo transcorrer sem o mínimo de cuidado, na naturalidade que não exigia nenhum esforço, ele não havia prestado atenção em seus gestos e muito menos em suas conseqüências. Sentiu vergonha pelo descuido, imaginou-se num mar sendo levado pelas ondas sem lutar para escolher à que lugar elas o levariam e afogou-se na escuridão de sua consciência imprudente procurando respostas. Foram minutos e minutos de silêncio dentro do quarto, não se sentia calor, não se percebia movimento, até que o homem se achou. Era estranho estar ali de novo, sentiu um formigamento no corpo, abriu os olhos e conseguiu enxergar alguns vultos à sua volta. Não via ainda com muita clareza, mas ele pôde perceber as pessoas que também estavam dentro da caixa preta, umas de olhos fechados e outras com eles abertos mexendo os oculares rapidamente com uma expressão de desespero. O homem levantou-se, caminhou tranqüilamente até a porta que podia ver e saiu por ela, agora se encontrava em um corredor, cheio de portas e muito bem iluminado.